terça-feira, outubro 09, 2007

Nietzsche e o Niilismo


por Albert Camus
"Negamos Deus, negamos a responsabilidade de Deus, somente assim libertaremos o mundo." Com Nietzsche, o niilismo parece tornar-se profético. Mas nada podemos concluir de Nietzsche, a não ser a crueldade rasteira e medíocre que ele detestava com todas as suas forças, enquanto não se colocar no primeiro plano de sua obra o clínico em vez do profeta. O caráter provisório, metódico, estratégico, em suma, de seu pensamento não pode ser questionado. Com Nietzsche, o niilismo torna-se pela primeira vez consciente. Os cirurgiões têm em comum com os profetas o fato de pensarem e operarem em função do futuro. Nietzsche só pensou em função de um apocalipse vindouro, não para exaltá-lo, pois ele adivinhava a face sórdida e calculista que esse apocalipse acabaria assumindo, mas para evitá-lo e transformá-lo em renascimento. Ele reconheceu o niilismo e examinou-o como fato clínico. Dizia-se o primeiro niilista realizado da Europa. Não por gosto, mas pela condição, e porque era grande demais para recusar o legado de sua época. Diagnosticou em si mesmo, e nos outros, a impotência de acreditar e o desaparecimento do fundamento primitivo de toda fé, ou seja, a crença na vida. No seu caso, o "pode-se viver revoltado?" transformou-se no "pode-se viver sem acreditar em nada?". Sua resposta é afirmativa. Sim, se se fizer da ausência de fé um método, se se levar o niilismo até suas últimas consequências e se, desembocando num deserto e, confiando no que vai vir, sentir-se, com o mesmo movimento primitivo, a dor e a alegria. Em vez da dúvida metódica, ele praticou a negação metódica, a destruição aplicada de tudo aquilo que ainda esconde o niilismo de si próprio, dos ídolos que escamoteiam a morte de Deus. "Para erigir um santuário novo, é preciso demolir um santuário, esta é a lei." Aquele que quiser ser criador no bem e no mal deve, segundo ele, em primeiro lugar destruir os valores. "Assim, o mal supremo faz parte do bem supremo, mas o bem supremo é criador." A sua maneira, ele escreveu o Discurso do método de sua época, sem a liberdade e a exatidão desse século XVII francês que tanto admirava, mas com a louca lucidez que caracteriza o século XX, século do gênio, segundo ele. Cabe-nos examinar esse método da revolta. A primeira providência de Nietzsche é aceitar aquilo que conhece. Para ele, o ateísmo é evidente, ele é "construtivo e radical". A vocação superior de Nietzsche, se acreditamos nele, é provocar uma espécie de crise e de parada decisiva no problema do ateísmo. O mundo marcha ao acaso, ele não tem finalidade. Logo, Deus é inútil, já que ele nada quer. Se quisesse alguma coisa, e aqui se reconhece a formulação tradicional do problema do mal, ser-lhe-ia necessário assumir "uma soma de dor e de ilogismo que diminuiria o valor total do devir". Sabe-se que Nietzsche invejava publicamente Stendhal pela fórmula: "a única desculpa de Deus é que ele não existe". Privado da vontade divina, o mundo fica igualmente privado de unidade e de finalidade. É por isso que o mundo não pode ser julgado. Todo juízo de valor emitido sobre o mundo leva finalmente à calúnia da vida. Julga-se apenas aquilo que é, em relação ao que deveria ser o reino do céu, idéias eternas ou imperativo moral. Mas o que devia ser não existe; este mundo não pode ser julgado em nome de nada. "As vantagens deste tempo: nada é verdadeiro, tudo é permitido." Essas fórmulas, que se repercutem em milhares de outras fórmulas, suntuosas ou irônicas, são suficientes em todo caso para demonstrar que Nietzsche aceita o fardo inteiro do niilismo e da revolta. Em suas considerações, aliás pueris, sobre "adestramento e seleção", ele chegou até a formular a lógica extrema do raciocínio niilista: "Problema: por que meios se obteria uma fórmula rigorosa de niilismo completo e contagioso, que ensinaria e praticaria com um conhecimento inteiramente científico a morte voluntária?" Mas Nietzsche recruta para a causa do niilismo os valores que tradicionalmente foram considerados como freios do niilismo. Principalmente a moral. A conduta moral, tal como exposta por Sócrates ou tal como a recomenda o cristianismo, é em si mesma um sinal de decadência. Ela quer substituir o homem de carne e osso por um reflexo de homem. Ela condena o universo das paixões e dos gritos em nome de um mundo harmonioso, totalmente imaginário. Se o niilismo é a incapacidade de acreditar, seu sintoma mais grave não se encontra no ateísmo, mas na incapacidade de acreditar no que existe, de ver o que se faz, de viver o que é oferecido. Esta deformação está na base de todo idealismo. A moral não tem fé no mundo. Para Nietzsche, a verdadeira moral não se separa da lucidez. Ele é severo com os "caluniadores do mundo", porque consegue distinguir, nessa calúnia, o gosto vergonhoso pela evasão. Para ele, a moral tradicional nada mais é do que um caso especial de imoralidade. Diz ele: "É o bem que tem necessidade de ser justificado." E mais: "Será por motivos morais que um dia se deixará de fazer o bem." A filosofia de Nietzsche gira certamente em torno do problema da revolta. Ela começa justamente por ser uma revolta. Mas sente-se o deslocamento operado por Nietzsche. Com ele, a revolta parte do "Deus está morto", que ela considera fato consumado; volta-se em seguida contra tudo aquilo que visa substituir falsamente a divindade desaparecida e desonra um mundo, certamente sem direção, mas que continua a ser o único crisol dos deuses. Contrariamente ao que pensam alguns de seus críticos cristãos, Nietzsche não meditou o projeto de matar Deus. Ele o encontrou morto na alma de seu tempo. Foi o primeiro a compreender a dimensão do acontecimento, decidindo que essa revolta do homem não podia conduzir a um renascimento se não fosse dirigida. Qualquer outra atitude em relação a ela, quer fosse o remorso, quer a complacência, devia levar ao apocalipse. Nietzsche, portanto, não formulou uma filosofia da revolta, mas construiu uma filosofia sobre a revolta. Se ele ataca particularmente o cristianismo, visa apenas à sua moral. Por um lado, deixa sempre intacta a pessoa de Jesus e, por outro, os aspectos cínicos da Igreja. Sabe-se que ele admirava, como conhecedor, os jesuítas. "No fundo", escreveu, "só o Deus moral é refutado." Para Nietzsche, como para Tolstoi, o Cristo não é um revoltado. O essencial de sua doutrina resume-se no consentimento total, na não-resistência ao mal. Não é preciso matar, mesmo para impedir que se mate. É preciso aceitar o mundo tal como ele é, recusar-se a aumentar a sua desventura, mas consentir em sofrer pessoalmente o mal que ele contém. O reino dos céus está imediatamente ao nosso alcance. Ele nada mais é do que uma disposição interior que nos permite colocar os nossos atos em contato com esses princípios e que nos pode dar a beatitude imediata. Não a fé, mas as obras, eis, segundo Nietzsche, a mensagem do Cristo. Depois disso, a história do cristianismo não foi mais do que uma longa traição dessa mensagem. O Novo Testamento já se acha corrompido, e, de Paulo aos Concílios, a subserviência à fé fez esquecer as obras. Qual é a corrupção profunda que o cristianismo acrescenta à mensagem de seu senhor? A ideia do julgamento, estranha aos ensinamentos do Cristo, e as noções correlativas de castigo e de recompensa. A partir desse instante, a natureza torna-se história, e história significativa: nasce a idéia da totalidade humana. Da boa-nova ao juízo final, a humanidade não tem outra tarefa senão conformar-se com os fins expressamente morais de um relato escrito por antecipação. A única diferença é que os personagens, no epílogo, dividem-se a si próprios em bons e maus. Enquanto o único julgamento do Cristo consiste em dizer que os pecados da natureza não têm importância, o cristianismo histórico fará de toda a natureza a fonte do pecado. "Que nega o Cristo? Tudo o que no momento leva o nome de cristão." O cristianismo acredita lutar contra o niilismo, porque ele dá um rumo ao mundo, enquanto ele mesmo é niilista na medida em que ao impor um sentido imaginário à vida impede que se descubra o seu verdadeiro sentido: "Toda igreja é uma pedra que se coloca no túmulo do homem-deus; ela tenta evitar sua ressurreição à força." A conclusão paradoxal, mas significativa, de Nietzsche é que Deus morreu por causa do cristianismo, na medida em que este secularizou o sagrado. É preciso entender aqui o cristianismo histórico e a "sua duplicidade profunda e desprezível". O mesmo raciocínio faz com que Nietzsche se insurja contra o socialismo e todas as formas de humanitarismo. O socialismo nada mais é do que um cristianismo degenerado. Na verdade, ele mantém essa crença na finalidade da história, que trai a vida e a natureza, que substitui fins ideais por fins reais e contribui para irritar tanto a vontade quanto a imaginação. O socialismo é niilista, no sentido preciso que Nietzsche passa a conferir a essa palavra. O niilista não é aquele que não crê em nada, mas o que não crê no que existe. Neste sentido, todas as formas de socialismo são manifestações ainda degradadas da decadência cristã. Para o cristianismo, recompensa e castigo implicavam uma história. Mas, por uma lógica inevitável, a história inteira acaba significando recompensa e castigo: a partir desse dia, nasceu o messianismo coletivista. Da mesma forma, a igualdade das almas diante de Deus, já que Deus está morto, leva simplesmente à igualdade. Também nisso Nietzsche combate as doutrinas socialistas como doutrinas morais. O niilismo, quer se manifeste na religião, quer na pregação socialista, é o fim lógico de nossos chamados valores superiores. O espírito livre destruirá tais valores ao denunciar as ilusões sobre as quais repousam, a barganha que implicam e o crime que cometem ao impedir que a inteligência lúcida realize a sua missão: transformar o niilismo passivo em niilismo ativo. Neste mundo liberado de Deus e das idéias morais, o homem se acha atualmente sozinho e sem senhor. Ninguém menos que Nietzsche, e nisso ele se distingue dos românticos, deixou acreditar que uma tal liberdade pudesse ser fácil. Essa selvagem liberação colocava-o entre aqueles a respeito de quem ele próprio dissera sofrerem de uma nova desventura e de uma nova felicidade. Mas, para começar, é a própria desventura que clama: "Pobre de mim, concedam-me então a loucura... Ao colocar-me acima da lei sou o mais rechaçado dos rechaçados." Quem não consegue manter-se acima da lei precisa, na verdade, encontrar uma outra lei ou a demência. A partir do momento em que o homem não acredita mais em Deus nem na vida imortal, ele se torna "responsável por tudo aquilo que vive, por tudo que, nascido da dor, está fadado a sofrer na vida". É a si próprio, e somente a si próprio, que cabe encontrara a ordem e a lei. Começam então o tempo dos rechaçados, a busca extenuante da justificação, a nostalgia sem objetivo, "a pergunta mais dolorosa, mais dilacerante, a do coração que se indaga: onde poderei sentir-me em casa?". Por ser um espírito livre, Nietzsche sabia que a liberdade do espírito não é um conforto, mas uma grandeza que se quer e obtém, uma vez ou outra, com uma luta extenuante. Ele sabia que, quando se quer ficar acima da lei, se corre o grande risco de se achar abaixo dessa lei. Compreendeu por isso que o espírito só encontrava a sua verdadeira emancipação na aceitação de novos deveres. O essencial de sua descoberta consiste em dizer que, se a lei eterna não é a liberdade, a ausência de lei o é ainda menos. Se nada é verdadeiro, se o mundo não tem regras, nada é proibido: para proibir uma ação, é efetivamente preciso que haja um valor e um objetivo. Ao mesmo tempo, nada é permitido: são igualmente necessários um valor e um objetivo para escolher uma outra ação. O predomínio absoluto da lei não é a liberdade, mas também não o é a disponibilidade absoluta. Todos os possíveis somados não dão a liberdade, mas o impossível é escravidão. O próprio caos também é uma servidão. Só há liberdade em um mundo onde o que é possível e o que não o é se acham simultaneamente definidos. Sem lei, não há liberdade. Se o destino não for orientado por um valor superior, se o acaso é rei, eis a marcha para as trevas, a terrível liberdade dos cegos. Ao termo da maior liberação, Nietzsche acaba por escolher a dependência total. "Se não fizermos da morte de Deus uma grande renúncia e uma perpétua vitória sobre nós mesmos, teremos que pagar por essa perda." Em outras palavras, com Nietzsche a revolta desemboca na ascese. Uma lógica mais profunda substitui, então, o "se nada é verdadeiro, tudo é permitido" de Karamazov por um "se nada é verdadeiro, nada é permitido". Negar que uma única coisa seja proibida neste mundo é o mesmo que renunciar ao que é permitido. Quando já não se consegue dizer o que é preto e o que é branco, a luz se apaga e a liberdade torna-se uma prisão voluntária. Pode-se dizer que Nietzsche se atira, com uma espécie de alegria terrível, ao impasse ao qual ele leva metodicamente o seu niilismo. Seu objetivo confesso é tornar insustentável a situação de seus contemporâneos. Para ele, a única esperança parece ser chegar ao extremo da contradição. Se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe, criando os seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição. "Quando não se encontra a grandeza em Deus", diz Nietzsche, "ela não é encontrada em lugar algum; é preciso negá-la ou criá-la." Negá-la era a tarefa do mundo que o cercava e que ele via correr para o suicídio. Criá-la foi a tarefa sobre-humana pela qual se dispôs a morrer. Ele sabia, na verdade, que a criação só é possível no extremo da solidão e que o homem só se empenharia nesse vertiginoso esforço, se, na mais extrema miséria do espírito, tivesse que consentir nesse gesto ou morrer. Nietzsche lhe grita então que a terra é a sua única verdade, à qual é preciso ser fiel, na qual é preciso viver e buscar a sua salvação. Mas ensina-lhe, ao mesmo tempo, que é impossível viver em uma terra sem lei, porque viver supõe justamente uma lei. Como viver livre e sem lei? O homem deve, sob pena de morte, responder a esse enigma. Nietzsche pelo menos não se furta a isso. Ele responde e sua resposta está no risco: Dâmocles nunca dançou melhor do que sob a espada. É preciso aceitar o inaceitável e manter-se no insustentável. A partir do momento em que se reconhece que o mundo não persegue nenhum fim, Nietzsche propõe-se a admitir a sua inocência, a afirmar que ele não aceita julgamentos, já que não se pode julgá-lo quanto a nenhuma intenção, substituindo, consequente-mente, todos os juízos de valor por um único sim, uma adesão total e exaltada a este mundo. Dessa forma, do desespero absoluto brotará a alegria infinita; da servidão cega, a liberdade sem piedade. Ser livre é justamente abolir os fins. A inocência do devir, desde que se concorde com isso, representa o máximo de liberdade. O espírito livre ama o que é necessário. O pensamento profundo de Nietzsche é que a necessidade dos fenómenos, se é absoluta, sem fissuras, não implica nenhuma espécie de coerção. A adesão total a uma necessidade total - esta é a sua definição paradoxal de liberdade. A pergunta "livre de quê?" é substituída por "livre para quê?". A liberdade coincide com o heroísmo. Ela é o ascetismo do grande homem, "o arco mais esticado que existe". Essa aprovação superior, nascida da abundância e da plenitude, é a afirmação sem restrições do próprio erro e do sofrimento, do mal e do assassinato, de tudo que a existência tem de problemático e de estranho. Ela nasce de uma vontade determinada de ser o que se é, em um mundo que seja o que ele é. "Considerar a si próprio como uma fatalidade não é fazer-se diferente do que se é..." A palavra é pronunciada. A ascese nietzschiana, partindo do reconhecimento da fatalidade, leva a uma divinização da fatalidade. Quanto mais implacável for o destino, mais digno de adoração ele se torna. O deus moral, a piedade, o amor são outros tantos inimigos da fatalidade que eles tentam compensar. Nietzsche não quer redenção. A alegria do devir é a alegria da aniquilação. Mas só o indivíduo é destroçado. O movimento de revolta, no qual o homem reivindicava o seu próprio ser, desaparece na submissão absoluta do indivíduo ao devir. O amorfati substitui o que era um odiumfati. "Todo indivíduo colabora com todo o ser cósmico, quer se saiba ou não disso, quer se queira ou não." O indivíduo perde-se, assim, no destino da espécie e no eterno movimento dos mundos. "Tudo o que foi é eterno, o mar devolve-o à beira da praia." Nietzsche retorna às origens do pensamento, aos pré-socráticos. Estes suprimiam as causas finais para deixar intacta a eternidade dos princípios que eles imaginavam. Só é eterna a força sem obje-tivo, o "jogo" de Heráclito. Todo o esforço de Nietzsche é no sentido de demonstrar a presença das leis no devir e do jogo na necessidade: "A criança é inocência e esquecimento, um recomeço, um jogo, uma roda que gira por si só, um primeiro movimento, o dom sagrado de dizer sim." O mundo é divino porque é fortuito. Por isso, só a arte, por ser igualmente fortuita, é capaz de entendê-lo. Nenhum julgamento explica o mundo, mas a arte pode nos ensinar a reproduzi-lo, assim como o mundo se reproduz ao longo dos retornos eternos. Na mesma beira de praia, o mar primordial repete incansavelmente as mesmas palavras e rejeita os mesmos seres espantados com a vida. Mas aquele que pelo menos consente em seu próprio retorno e no retorno de todas as coisas, que se faz eco e eco exaltado, participa da divindade do mundo. A divindade do homem acaba se introduzindo por esse viés. O revoltado que, no princípio, nega Deus, visa em seguida substituí-lo. Mas a mensagem de Nietzsche é que o revoltado só se torna Deus ao renunciar a toda revolta, mesmo à que produz os deuses para corrigir este mundo. "Se existe um Deus, como suportar o fato de não sê-lo?" Há, na verdade, um Deus, que é o mundo. Para participar de sua divindade, basta dizer sim. "Não rezar mais, mas dar a bênção", e a terra se cobrirá de homens-deuses. Dizer sim ao mundo, reproduzi-lo, é ao mesmo tempo recriar o mundo e a si próprio, é tornar-se o grande artista, o criador. A mensagem de Nietzsche resume-se na palavra criação, com o sentido ambíguo que ela assumiu. Nietzsche só exaltou o egoísmo e a insensibilidade próprios de todo criador. A transmutação dos valores consiste somente em substituir o valor do juiz pelo do criador: o respeito e a paixão pelo que existe. A divindade sem imortalidade define a liberdade do criador. Dionísio, deus da terra, urra eternamente no desmembramento. Mas ele representa ao mesmo tempo essa beleza perturbada que coincide com a dor. Nietzsche pensou que dizer sim à terra e a Dionísio era dizer sim a seus próprios sofrimentos. Tudo aceitar, a suprema contradição e a dor ao mesmo tempo, era reinar sobre tudo. Nietzsche aceitava pagar o preço por esse reino. Só a "terra séria e doente" é verdadeira. Só ela é divindade. Da mesma forma que Empédocles, que se atirava no Etna para ir buscar a verdade onde ela está, nas entranhas da terra, Nietzsche propunha ao homem mergulhar no cosmos, a fim de reencontrar a sua divindade eterna e tornar-se ele próprio Dionísio. Vontade de poder termina, assim como os Pensamentos de Pascal, que tanto nos relembra, com uma aposta. O homem não obtém ainda a certeza, mas apenas a vontade de certeza, o que não é a mesma coisa. De modo idêntico, Nietzsche hesitava nesse extremo: "Eis o que é imperdoável em ti. Tens os poderes e te recusas a assinar." Logo, ele teve que assinar. Mas o nome de Dionísio só imortalizou os bilhetes a Ariane, que ele escreveu quando ficou louco. Em certo sentido, a revolta em Nietzsche levou ainda à exaltação do mal. A diferença é que o mal já não é uma vingança. Ele é aceito como um dos aspectos possíveis do bem e, com muito mais convicção, como uma fatalidade. Portanto, ele é considerado como algo ultrapassado e, por assim dizer, como um remédio. Na mente de Nietzsche tratava-se apenas do consentimento orgulhoso da alma diante do inevitável. No entanto, conhecem-se a sua posteridade e o tipo de política que ia ser autorizado pelo homem que se dizia o último alemão antipolítico. Ele imaginava tiranos artistas. Mas a tirania é mais natural do que a arte para os medíocres. "Antes César Bórgia que Parsifal", exclamava ele. Ele teve ambos, César e Bórgia, mas privados da aristocracia do coração que ele atribuía aos grandes homens do Renascimento. Ao pedir que o indivíduo se inclinasse diante da eternidade da espécie e mergulhasse no grande ciclo do tempo, fizeram da raça uma particularidade da espécie e obrigaram o indivíduo a curvar-se diante desse deus sórdido. A vida, da qual falava com temor e tremor, foi degradada a uma biologia para uso doméstico. Uma raça de senhores incultos, ainda balbuciando a vontade de poder, encarregou-se, então, da "deformidade anti-semita", que ele nunca deixou de desprezar. Ele tinha acreditado na coragem unida à inteligência, e foi a isso que chamou de força. Em seu nome, colocou-se a coragem contra a inteligência, e essa virtude que foi realmente a dele transformou-se no seu contrário: a violência cega. Ele tinha confundido liberdade com solidão, de acordo com a lei de um espírito altivo. Sua "solidão profunda do meio-dia e da meia-noite" perdeu-se, entretanto, nas multidões mecanizadas que finalmente se multiplicaram na Europa. Partidário do gosto clássico, da ironia, da impertinência frugal, aristocrata que soube dizer que a aristocracia consiste em praticar a virtude sem se perguntar por quê, e que se deve duvidar de um homem que tivesse necessidade de razões para ser honesto, obcecado pela integridade ("essa integridade que se tornou um instinto, uma paixão"), servidor obstinado dessa "equidade suprema da suprema inteligência, que tem como inimigo mortal o fanatismo", trinta e três anos após a sua morte foi considerado por seu próprio país um professor da mentira e da violência, tornando detestáveis as noções e virtudes que o seu sacrifício tornara admiráveis. Na história da inteligência, com exceção de Marx, a aventura de Nietzsche não tem equivalente; jamais conseguiremos reparar a injustiça que lhe foi feita. Sem dúvida, conhecem-se filosofias que foram traduzidas, e traídas, no decurso da história. Mas, até Nietzsche e o nacionalsocialismo, não havia exemplo de que todo um pensamento, iluminado pela nobreza e pelo sofrimento de uma alma excepcional, tivesse sido ilustrado aos olhos do mundo por um desfile de mentiras e pelo terrível amontoado de cadáveres dos campos de concentração. A doutrina do super-homem levando à fabricação metódica de subomens, eis o fato que deve, sem dúvida, ser denunciado, mas que também exige uma interpretação. Se o fim último do grande movimento de revolta dos séculos XIX e XX devia ser o jugo impiedoso, não seria então necessário dar as costas à revolta e retomar o grito desesperado de Nietzsche em sua época: "Minha consciência e a sua não são mais a mesma consciência."? Reconheçamos em primeiro lugar que será sempre impossível confundir Nietzsche com Rosenberg. Devemos ser advogados de defesa de Nietzsche. Ele próprio o afirmou, ao denunciar, antecipadamente, a sua descendência impura: "aquele que liberou o espírito deve ainda purificar-se". Mas a questão é descobrir se a liberação do espírito, tal como a concebia, não excluía a purificação. O próprio movimento que culminou com Nietzsche, e que o sustenta, tem as suas leis e a sua lógica, que talvez expliquem a sangrenta desfiguração que se infligiu à sua filosofia. Não haverá nada em sua obra que possa ser utilizado no sentido do assassinato definitivo? Os matadores, desde que negassem o espírito em favor da letra, e até mesmo aquilo que na letra continua sendo espírito, não poderiam encontrar os seus pretextos em Nietzsche? A resposta deve ser sim. A partir do momento em que se negligencia o aspecto metódico do pensamento nietzschiano (e não é certo que ele mesmo o tenha sempre observado), a sua lógica revoltada não conhece mais limites. Deve-se observar, da mesma forma, que não é na recusa nietzschiana dos ídolos que o assassinato encontra sua justificação, mas na adesão apaixonada que coroa a obra de Nietzsche. Tudo aceitar pressupõe aceitar o assassinato. Aliás, há dois modos de consentir no assassinato. Se o escravo diz sim a tudo, ele aceita a existência do senhor e do seu próprio sofrimento; Jesus ensina a não-resistência. Se o senhor diz sim a tudo, ele consente na escravidão e no sofrimento dos outros; eis o tirano e a glorificação do assassinato. "Não é ridículo acreditar em uma lei sagrada, inquebrantável, não mentirás, não matarás, em uma existência cuja característica é a mentira perpétua, o assassinato perpétuo?" Certamente, e a revolta metafísica em seu primeiro movimento era apenas o protesto contra a mentira e o crime da existência. O sim nietzschiano, esquecido do não original, renega a própria revolta, ao mesmo tempo em que renega a moral que se recusa a aceitar o mundo como ele é. Nietzsche clamava por um César romano com a alma do Cristo. Em sua mente, isso era, ao mesmo tempo, dizer sim ao escravo e ao senhor. Mas, afinal, dizer sim a ambos significa tornar sagrado o mais forte dos dois, isto é, o senhor. César devia fatalmente renunciar à dominação do espírito a fim de escolher o reino do fato. "Como tirar partido do crime?", indagava-se Nietzsche, como bom professor fiel a seu método. O César devia responder: multiplicando-o. "Quando os fins são grandes", escreveu Nietzsche, em detrimento de si mesmo, "a humanidade usa uma outra medida e não julga o crime como tal, mesmo recorrendo aos meios mais terríveis." Nietzsche morreu em 1900, no início do século em que essa pretensão ia tornar-se mortal. Em vão exclamou na hora da lucidez: "É fácil falar de todas as espécies de atos imorais, mas teremos a força de suportá-los? Por exemplo, eu não conseguiria suportar faltar com a minha palavra ou matar; eu persistiria, mais ou menos tempo, mas morreria por isso, este seria o meu destino." A partir do instante em que era dado o assentimento à totalidade da experiência humana, podiam surgir outros que, longe de resistirem, se fortaleceriam na mentira e no assassinato. A responsabilidade de Nietzsche está no fato de ter legitimado, por motivos superiores de método, mesmo que por um instante, no meio do pensamento, esse direito à desonra, do qual Dostoievski já dizia que, se fosse oferecido aos homens, poder-se-ia estar sempre certo de vê-los correrem e a ele se lançarem. Mas a sua responsabilidade involuntária vai ainda mais longe. Nietzsche é efetivamente o que ele reconhecia ser: a consciência mais aguda do niilismo. O passo decisivo que ele faz o espírito de revolta dar consiste em fazê-lo saltar da negação do ideal à secu-larização do ideal. Já que a salvação do homem não se realiza em Deus, ela deve fazer-se na terra. Já que o mundo não tem rumo, o homem, a partir do momento em que o aceita, deve dar-lhe um rumo, que culmine em um tipo superior de humanidade. Nietzsche reivindicava o rumo do futuro humano. "A tarefa de governar a terra vai derrotar-nos." E ainda: "Aproxima-se o tempo em que será necessário lutar pelo domínio da terra, e essa luta será travada em nome dos princípios filosóficos." Ele anunciava o século XX. Mas, se o anunciava, é que estava alertado para a lógica interior do niilismo e sabia que uma de suas consequências era o império. Por isso mesmo, ele preparava esse império. Existe liberdade para o homem sem Deus, tal como imaginado por Nietzsche, isto é, o homem solitário. Há liberdade ao meio-dia, quando a roda do mundo pára e o homem aceita tudo o que existe. Mas o que existe vem a ser. "É preciso dizer sim ao devir." A luz acaba passando, o eixo do dia declina. Então a história recomeça, e, na história, é preciso procurar a liberdade; é preciso dizer sim à história. O nietzschismo, teoria da vontade de poder individual, estava condenado a inscrever-se numa vontade de poder total. Ele nada era sem o império do mundo. Sem dúvida, Nietzsche odiava os livres-pensadores e os humanitários. Ele utilizava a expressão "liberdade do espírito" em seu sentido mais extremo: a divindade do espírito individual. Mas ele não podia impedir que os livres-pensadores partissem do mesmo fato histórico que ele ¿ a morte de Deus ¿ e que as consequências fossem as mesmas. Nietzsche viu que o humanitarismo efetivamente nada mais era do que um cristianismo privado de justificação superior, que preservava as causas finais rejeitando a causa primeira. Mas ele não se deu conta de que as doutrinas de emancipação socialista, por unia lógica inevitável do niilismo, deviam tomar a cargo aquilo com que ele próprio havia sonhado - a super-humanidade. A filosofia seculariza o ideal. Mas chegam os tiranos e logo secularizam as filosofias que lhes dão esse direito. Nietzsche já tinha adivinhado essa colonização a propósito de Hegel, cuja originalidade, segundo ele, foi inventar um panteísmo, em que o mal, o erro e o sofrimento não poderiam mais servir de argumento contra a divindade. "Mas o Estado, os poderes estabelecidos se utilizaram imediatamente dessa iniciativa grandiosa." No entanto, ele próprio havia imaginado um sistema em que o crime não podia mais servir de argumento contra nada e cujo único valor residia na divindade do homem. Essa iniciativa grandiosa exigia também ser utilizada. A esse respeito, o nacionalsocialismo é apenas um herdeiro transitório, a decorrência irada e espetacular do niilismo. De outro modo, lógicos e ambiciosos serão todos aqueles que, corrigindo Nietzsche com a ajuda de Marx, escolherão dizer sim apenas à história, e não mais à criação como um todo. O rebelde que Nietzsche fazia ajoelhar-se diante do cosmos passará a ajoelhar-se diante da história. Que há de espantoso nisso? Nietzsche, pelo menos em sua teoria da super-humanidade, e antes dele Marx, com a sua sociedade sem classes, substituem ambos o além pelo mais tarde. Nisso, Nietzsche traía os gregos e os ensinamentos de Jesus, que, segundo ele, substituíam o além pelo imediatamente. Marx, assim como Nietzsche, pensava em termos estratégicos e, como Nietzsche, odiava a virtude formal. Ambas as revoltas, que acabam igualmente pela adesão a um certo aspecto da realidade, vão fundir-se no marxismo-leninismo, encarnando-se na casta, da qual Nietzsche já falava, que devia "substituir o padre, o educador, o médico". A diferença essencial é que Nietzsche, enquanto esperava pelo super-homem, propunha-se a dizer sim a tudo o que existe, e Marx, a tudo o que vem a ser. Para Marx, a natureza é aquilo que se subjuga para obedecer à história; para Nietzsche, aquilo a que se obedece para subjugar a história. É a diferença entre o cristão e o grego. Nietzsche, ao menos, previu o que ia acontecer: "O socialismo Moderno tende a criar uma forma de jesuitismo secular, a tornar todos os homens instrumentos"; e ainda: "Aquilo que se deseja é o bem-estar... Em decorrência, caminha-se rumo a uma escravidão espiritual como nunca se viu antes... O cesarismo intelectual paira acima de toda a atividade dos homens de negócio e dos filósofos." Colocada no crisol da filosofia nietzschiana, a revolta, em sua loucura de liberdade, culmina no cesarismo biológico ou histórico. O não absoluto levara Stirner a divinizar simultaneamente o crime e o indivíduo. Mas o sim absoluto acaba universalizando o assassinato e o próprio homem ao mesmo tempo. O marxismo-leninismo realmente aceitou o ônus da vontade de Nietzsche, mediante o desconhecimento de algumas virtudes nietzschianas. O grande rebelde cria, então, com as próprias mãos, para nele se confinar, o reino implacável da necessidade. Tendo escapado da prisão de Deus, sua primeira preocupação será a de construir a prisão da história e da razão, completando assim o escamoteamento e a consagração desse niilismo que Nietzsche pretendeu dominar.
Fonte: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.