domingo, setembro 20, 2009

Conselho do dia

Estás enfurnada numa filosofia profunda e obscura,
fechada melancolicamente num mundo que criastes pra si.
Digo-lhe com toda certeza, precisas de um conselho,
e assim o faço a mim;
deves recorrer a uma filosofia fácil, sabes bem, aquela voltada ao senso
comum, incorre em ação...sabes que é essa que lhe fará bem...
Já és melancólica, não precisa de tanta metafísica, menina...
Menina nada...sem essa de apelo infantil.
Encontra somente incertezas em teus discursos,
já sabes estás segura num entendimento prático que o porvir lhe reserva.
Nasce vida em ti,
uma nova vida em si.
Sinto muito não sei quando poderá lutar por ti, os teus anseios mudaram de lugar
na lista das prioridades.
Uma boa notícia, permaneces viva, sobrevivente eu diria, não fugindo de toda a dramaticidade
casual...
Será que é a minha aniquilação? o que será meu eu diante do outro?
Será a possível luta pelo outro a base de minha força doravante?
Será, será....?
Não sei dizer se é mais bom que ruim,
recuso escutar o senso comum, o que vai ser inevitável...se sou o senso comum.
O que eu sou agora?
Sem conselhos por ora.

domingo, setembro 06, 2009

Inferno

Quando o inferno é você,
e matar o mal é propriamente se ferir..
Quando não há auto-ajuda ou algum manual que venha ser de alguma valia,
até mesmo porque ignora-se todos..
Quando já se sabe a causa, os meios para algum fim otimista, mas com um discurso sempre
morno,
prestes a causar algum enjoô..
No fundo és egoísta, o seu próprio mal-estar insistente é um poço de egoísmo.
Fugiria de tudo e todos e logo depois se arrependeria, afinal você é o próprio inferno
em todos os lugares.
Vai chegar uma hora em que serás indefensável, se já não o és...
E permanece nos mesmos sonhos de fuga,
fugir de si mesma não se pode...
Sorria! O inferno não existe,
e olhe-se no espelho vê-lo em si
já causou transtornos demais.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Romance LIII ou das Palavras Aéreas

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora...

- e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juizes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!


Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?

- Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

- o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

- a umidade dos presídios,

- a solidão pavorosa;

- duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

- e a sentença que caminha,

- e a esperança que não volta,

- e o coração que vacila,

- e o castigo que galopa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

- sois madeira que se corta,

- sois vinte degraus de escada,

- sois um pedaço de corda...

- sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

- sois um homem que se enforca!


Cecília Meireles