segunda-feira, fevereiro 04, 2013

Espirrado

          À noite, quando os detentos foram recolhidos às celas, o moço, deitado na cama, pensava em sua amada. Parecia-lhe mesmo que, naquele dia, todos os condenados, seus antigos inimigos, o olhavam de outra maneira. Ele lhes dirigira a palavra e todos lhe haviam amigavelmente respondido. Lembrava-se disso agora, mas sem espanto. Não mudaram tudo? Pensava nela, recordava que tinha cumulado de dores. Evocava-lhe a face magra e pálida, mas a lembrança já não era remorso. Ele sabia com que infinito amor resgataria os sofrimentos que causara em Sonia.
          Demais, que significariam agora todos esses pesares do passado? Tudo, até o seu crime, a sentença que o condenara e o enviara à Sibéria, tudo lhe parecia longínquo acontecimento que não lhe dizia respeito. Ele estava, de resto, naquela noite, incapaz de refletir longamente e de concentrar o pensamento. Sentia, apenas. Ao raciocínio substituíra a vida. O espírito devia estar igualmente regenerado. 
          Sob o travesseiro havia um Evangelho. Pegou-o maquinalmente. Era de Sonia. Foi lá que ela lhe lera outrora a ressurreição de Lázaro. N começo do seu cativeiro, julgava-se perseguido por ela, com sua religião. Supunha que ela lhe ia lançar constantemente o Evangelho à cabeça e propor-lhe lições piedosas. Mas, com grande espanto seu, tal não acontecera. Ela não se ofereceu uma só vez para emprestar-lhe o livro sagrado. Ele mesmo lho havia pedido antes da moléstia dela e ela lho trouxera sem nada dizer. Ela ainda não o havia aberto. 
          Ainda agora não o abria, porém um pensamento atravessou-lhe rápido o espírito. "Sua fé pode não ser a minha, agora, mas pelo menos seus sentimentos, suas tendências, não nos serão comuns?..."
          Sonia ficara também agitadíssima naquele dia e à noite tornou a adoecer. Contudo estava tão feliz, de felicidade tão inesperada, que chegara quase a ter medo. Sete anos! sete anos só! Na embriaguez das primeiras horas, pouco faltava para que ambos considerassem os sete anos sete dias! Raskolnikov sabia que aquela vida nova não lhe seria concedida de graça e deveria ao contrário custar-lhe longos e bem heroicos esforços.
          Começa aqui, entretanto, outra história, a da lenta renovação de um homem, de sua regeneração progressiva, sua gradual passagem de um mundo a outro, de seu conhecimento progressivo de uma realidade totalmente ignorada até então. Poderíamos encontrar nisso matéria para um novo relato, mas este está acabado.

Fim de Crime e Castigo, Dostoiévski
A insônia podes fazê-la cheirar livros fechados por anos fazendo-a espirrar...e transcrever madrugada, nenhum ácaro cego com suas mandíbulas pinças pareceu-me malogrado.