sábado, março 30, 2013

Bruno Tolentino


VIA CRUCIS

A Via Crucis foi uma selvageria,

a Crucifixão uma brutalidade;

mas em três, quatro horas, acabou a agonia,

baixou a eternidade.

Eu vivo aqui, crucificada noite  e dia,

carrego da manhã à tarde

o meu lenho de opróbrio e a noite me excrucia,

lenta, fria, covarde.

Ah, como eu preferia

que crucificassem de uma vez, sem o alarde

de algum terceiro dia!

Mas toca-me seguir nessa monotonia,

a agonia de alçar-me do catre

e abrir de novo os braços, vazia.


         Extraído de As Horas de Katharia*.

O VERME

         O coração, enfermo porque vive
do que morre,debruça-se à janela,
vê a luz desertando-o no declive
entre a vida e a paixão do ser por ela,
         e comovido vai compor a tela
em que a reduz para contê-la. Eu tive
essa mesma ilusão, compus a bela
equação passional da mente livre
         e pus meu coração nesse vazio.
Mas falhei. Ele nunca permitiu
o oásis ilusório na epiderme
         sensível do real. Eu tinha um verme
no coração, que foi roendo o fio
da ilusão e acabou por socorrer-me.



80 WIEDERGEKOMMEN

E aqui venho de volta e Te agradeço
me haveres socorrido,
porque não levo mais no corpo combalido
a dor que ainda mereço.

Perdi-me muitas vezes, mas paguei logo o preço,
e por fim o alarido
do fogo eterno já não faz nenhum sentido.
A minha longa litania foi um terço

Rezado às escondidas,
sem que a consolação
da vida eterna me curasse desta vida.

Mas Te agradeço que um martírio sem razão
fechasse uma ferida
sem culpa e sem perdão.


FRAGMENTO DE UM CORO

Nós
         os de cinza e tempo
nós os de olhar barrado
nós os de céus ardendo
e ventos desfigurados
nós os de mito e queda
nós os de mãos atadas
ecos
         desdobrando
                            gritos
mudos mantos desdobrados
nós silenciados muros
de desesperos caiados
nós cegos irmãos em luto
por mundos manietados
nós sonâmbulos
                   remotos
nós vagos
só recordados
os estáticos andantes
escuramente pisados
nós os egressos da sede
diuturnamente velada
nós o exílio de nós mesmos
viva lâmpada apagada
nós entre o infinito e o medo
esparsos
            desencontrados
nós frios
de cinza e tempo
em tempo e cinza
                       encerrados

De  Anulação e outros reparos, 1963


Bruno Tolentino

sexta-feira, março 29, 2013

O ente branco arcaico



Kouros
c 560-550 aC
E o que são os sonhos
em que apareces nu
e eu ainda amando-o
não és o mesmo objeto que um
dia fora
talvez a nudez seja minha
e o mais provável é que não signifique
nada
e eu deveria ter o olhar sistêmico de um lógico
mas tô cansada de amar-te em meus
sonhos
traiçoeiros
em cenas no cosmos tão negro
trazendo a lembrança de uma brancura
como uma estátua que traz o ente
em que há só verdade
o Ser em que há causa do meu amor arcaico
e no fim eu acordo pra lembrar disso
com o real tão opaco
num destino de dever ser
fazendo de ti meu mito, meu objeto de culto...
Ah deem me Lógica, fazem bem...
Como pude ter a audácia de em ti mimetizar Kóuros em meus sonhos,
ah me poupe e vá direto pro não-ser...anda..
sem
dizer
saber
do ser
que era
perfeito
e sendo
vendo
crendo
no
pensamento
com alguma
pretensão
de absorver
parte
do
todo

Rascunhos

O meu arrependimento é genuíno
mas a fome do moribundo pretendido filósofo
é maior que tudo
ainda duvido da minha ação
como poderei confessar o quanto posso ser
eu nem sei o nome disso tudo que fui
em alguns segundos
o nome é monstro, um monstrinho com tanta
boa vontade em ignorar
a fome, e uma dieta baseada em bolachas...
Meu Deussssssssss
que eu descobri,
uma falácia..

Noduloso

Ah se, e somente se, eu implicasse disjunção a partir
de um bocado de signos vazios
afinal eles querem só a forma
e isso de eu
ter de aprender a ser lógica e ter
no gozo
tudo que poderia ser aquele tão importante anestésico
d´uma melancolia com premissas que eu nem sei
ah sei
fiz um monte de merda, escolhi errado
agora tô tentando fazer o certo
mas dane-se
já que a Filosofia trata de ir substituindo tudo
rapidamente, menos o
momento em que fica muito claro o que você deve deixar para trás, Sâmara.
Com coragem é hora de se despedir de uma velha realidade que se inflamava..
Enfim, a esbórnia ficou opaca, nesse mundo sublunar...
E o que tá dentro seduz mais do que está fora,
e o querer não é poder
e sem essa de induzir através da paixão
eu sei que querem é forma, sentenças, opinismo e muitas certezas
lógicas de preferência...
ok
eu sigo, e os pigmeus já não são tão gigantes como pareciam
tudo só passa pela questão do tempo que eu leio mais que você
durante ou pelo menos uns vinte anos..
e os nódulos voltaram, e não pergunte-me o porquê...

terça-feira, março 19, 2013

Poema em linha reta




Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)



Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Monstrinho pigmeu e vil

Depois do domingo recorrer a maior tela que era azul
saber da necessidade de existir mais amor
depois de acrescentar tanto vermelho
e fazer outra tela só vermelha
ou seja a necessidade é imensa
de ver pigmeus crescerem pelo número de livros
que leram
e a cúpula dos que tentam desvendar os segredos de todo
o universo,
no fim a questão é destruir o discurso do outro..pura erística
ontem, transformei-me em um monstro
nunca fui tão mesquinha
um monstro vil e mesquinho
daqueles sem nenhuma compaixão a uma confissão
de fome
de desespero
enquanto eu duvidava
me fazendo de mal entendida e, fujo, como sempre
e o pior
eu só pensava em mim todo o tempo..
e a porra da ética prática,
quando é que eu me compadeço do outro,
quando eu chego na van e começo a pensar no quanto
sou egoísta, e quanta maldade há em mim...e eu não fiz merda nenhuma
pra ajudar, quem claramente me pediu..
Depois de muito arrependimento, a ação de repulsa
pois o momento de ser ética acho que já passou,
e eu não mereço ajuda nenhuma, já que não ouço
o pedido de socorro de um desesperado tão próximo..
Acho que Deus já me perdoou, porém
eu não sabia que poderia ser tão cruel com o outro...
comigo eu já sabia, mas com o outro..
Talvez Deus me dê a oportunidade de remissão hoje,
quem sabe..talvez numa confissão ridícula na aula de
Ética Prática...uma vergonha..


sexta-feira, março 15, 2013

O verbo e questão primeira era, não ter,
não ter..
gramados verdes a mirar e possuir
e agora que os via
não havia nenhum pau
nem um discurso amoroso
nada e ninguém
não sabia de que falta era
objetos? atos?
a resposta sanada
Deus, poderia tê-lo em minha visão
já que inicia a vontade de negação
de tudo
o medo de nunca conhecer
de morrer em ignorância desprezível
de ser toda errada
e ainda sim, não ter..
Muda-se o discurso imbecil
os hábitos ridículos
da inclinação ao inflamar que me parecia eterno
numa tristeza de biblioteca vazia
e uma batucada externa que só me trazia mais
apatia..
No fim, estou triste, rego as maçãs um pouco
até com o prazer de sentir-me revolvida por algo
acendo uma vela e observo
a chama no início, que é pequena...
na madrugada acordo,
a chama está vermelha
acordo de novo e está normal..
de manhã tudo se queimou..
Não sei de nada pro meu discurso,
reservo-me a falta de opiniões..
de amores, de punhetas e cacetes..

domingo, março 10, 2013

Indolência

A poesia como afirmação do ethos
ao anunciar as virtudes
num canto, que virou mito..
A intuição como conhecimento direto da realidade
a crítica sem fim, sem direção..
O caos de não saber se era ali que eu queria estar..
Já indo eu sabia que não queria, então porque fui?
Pra ficar ridicularizando as percepções..
Esses sentidos já estão mandando demais..
ah percepções..
Indolência junto ao carecente..
Tantas coisas perderam o sentido, depois de eu saber
como deve Ser..
E parece até um luto inflamado a tela que eu tenho em mente
Mas enfim, a poética que faz sentido é a minha idealização
aquela que é só minha
e devo ter perdido em algum canto,
com tantos discursos caindo um após o outro
eu não sei a que agarrar, não será a signos que se pegam com a mão..
ou a sua mão bem forte em silêncio, caminhando, caminhando..
e linguagens que arrefecem incertezas...discursos amorosos,
descobrir o princípio para controlar..nada disso..
As pessoas vão diminuindo e eu também...Deus! este não pode ser
o conhecimento direto..sem essa de suprimir a realidade, Sâmara..
Estas evidências transformadas em signos abafados pelo desejo
da morte do gozo, só isso. Sem entender..

Do que Nada se SabeA lua ignora que é tranquila e clara 
E não pode sequer saber que é lua; 
A areia, que é a areia. Não há uma 
Coisa que saiba que sua forma é rara. 
As peças de marfim são tão alheias 
Ao abstracto xadrez como essa mão 
Que as rege. Talvez o destino humano, 
Breve alegria e longas odisseias, 
Seja instrumento de Outro. Ignoramos; 
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta. 
Em vão também o medo, a angústia, a absorta 
E truncada oração que iniciamos. 
Que arco terá então lançado a seta 
Que eu sou? Que cume pode ser a meta? 

Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"


terça-feira, março 05, 2013

Hoje o crepúsculo foi em S
virado pro sonho
e olhando pra frente
indo ao seu encontro
e se os signos são meus
quem dirá
que a realidade
não se enternece
perante os meus olhos
para que eu celebre
a vida, a minha vida...


Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...


Florbela Espanca

domingo, março 03, 2013

A Minha Alma Partiu-seA minha alma partiu-se como um vaso vazio. 
Caiu pela escada excessivamente abaixo. 
Caiu das mãos da criada descuidada. 
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. 

Asneira? Impossível? Sei lá! 
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. 
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. 

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. 
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. 
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. 

Não se zanguem com ela. 
São tolerantes com ela. 
O que era eu um vaso vazio? 

Olham os cacos absurdamente conscientes, 
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. 

Olham e sorriem. 
Sorriem tolerantes à criada involuntária. 

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. 
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. 
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? 
Um caco. 
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa
Sunday bloddy sunday
ah q ótimo
já regadas as plantas
depois de acordar e dormir não sei quantas vezes
café igual coca-cola
perdendo alguns signos de um provável
discurso amoroso
ainda bem, gotejar a tempo
numa higienização fluxo praticidade da natureza
com tanta fumaça perdi o olfato
a verdade é que também a predisposição pra sentir o cheiro
azedo que me pedes para confirmar-te
eu não poderia distinguir
não nesse domingo
que a realidade está tão calma
eu com os meus laiá laiá
em alguma antologia mpbística
bom pra ler "Fragmentos de um discurso amoroso"
bom também pensar que está livre de algo que não sabes bem do que se trata
mas seria ruim evitar qualquer discurso impregnado daquele discurso?
menos aquele da imaginação..
E aquele negócio da alma partir como um vaso vazio,
é
signo do Álvaro e não de outro..



A FrescuraAh a frescura na face de não cumprir um dever! 
Faltar é positivamente estar no campo! 
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós! 
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros, 
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo, 
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha. 
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida. 
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação. 
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora, 
Deliberadamente à mesma hora... 
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico. 
É tão engraçada esta parte assistente da vida! 
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto, 
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, março 01, 2013

Capuccino tepeemico

Do vício que ontem se fez ao
vapor quente da sauna no revezamento ducha gelada
o ritual do esquentar e esfriar
extasiante
mais a olímpica nadada com fôlego sôfrego
o sonho com os piolhos e câncer..
No sonho a vida parasitante caindo de minha cabeça inundada
e tão bem hidratada..
enquanto me assustava com o tanto que proliferavam
depois o diagnóstico fantástico do sonho
você vai morrer de câncer.. auto-piedade será?
é você que se ameaça se não se controlar?
dá seu veredito de elevação mórbida..
 uma noite apocalíptica
depois de tanto relaxamento, 
eu não entendo
os cremes hidratantes não foram o suficiente?
as braçadas
o frio e o quente? a transpiração e o arrepio?
tanta vida pulsante
e
estar no décimo oitavo andar vendo o trânsito dos carros
e o silêncio das pessoas nas falas que não podem ser ditas
sempre em conselhos bons..
agora você já vai fazer 30 anos, deve-se arreglar todo..
ah...como é ter tudo e ao mesmo tempo, só decorar, 
decorar, decorar.. ? menos a vista de lá de cima..
tantas atividades que poderiam ser feitas numa torre luxuosa,
em frente o prédio da Justiça?
era pra ser perfeito.. e quando me disse que certas coisas chegam tarde
ou quando chegam não possuem a mesma importância de antes,
eu entendi..
Conquistei, conquistei, agora estou aqui na Torre..usufruindo pouco..
e os vapores e águas que para ti foram tão satisfatórios quase são
efêmeros pra mim..se a vista caiu em logro daqui de cima..
Um sonho, e que é um sonho? Não será a nossa vida algo parecido?
Enfim, se tudo isso é ontem, num real abarrotado de hormônios, pode-se
dizer dos sonhos
e de novo dos hormônios, depois do vinil do Vinicius depois de quatro
dias ainda não enjoar..
já que agora chove e, eu só precise de algo quente..e sonolento ..