Segunda Fala
Sinto, às vezes, em mim, aquele incêndio trágico
Da cólera que irrompe em chamas de furor...
E a este meu coração alucinado e mágico
Desvenda-se um aspecto ignoto do Amor.
Sinto dentro de mim a alma da Tempestade
E no meu peito fez seu ninho a Destruição.
Há momentos de dor, de fúnebre saudade
Em que todo o Universo é um mar de escuridão !
Há horas, nesta vida, em que tudo o que existe
É nuvem tormentosa e escura de trovoada...
As árvores têm um ar desiludido e triste
E a própria luz do dia é treva disfarçada...
Há horas em que a Vida é um pântano miasmático,
Onde passeia triste a pálida Doença,
Quando o Poeta fica angustioso e cismático.
Solitário, a chorar sobre uma noite imensa!...
Horas de Negação, momentos de Niilismo,
Quando uma voz de morte e de descrença escuto.
Quando o Nada se vai sentar sobre um abismo.
Quando a própria Esperança anda toda de luto...
Nestes momentos, cada homem é uma fera;
O amor abandonou, em lágrimas, seu peito.
Morreu no seu olhar o clarão da Quimera,
Fez-se na sua alma a noite do Imperfeito !
Cada cérebro humano é floresta sombria.
Onde há ideais que se trucidam, num delírio!
Ó noite imensa onde há soluços e estertores
Que o vento leva, como pétalas de flores !
Onde vagueiam, como sombras. Ansiedades;
Onde há Delírios, Esperanças e Vontades
Que se elevam no azul, que agitam grandes asas,
Fazendo voar a cinza onde agonizam brasas
Que são espectros de Desejos que arrefecem,
Ou símbolos de sóis vermelhos que anoitecem...
A noite do mistério, onde sonha e murmura
Tanta alma. Senhor, e tanta criatura,
Esse mundo de sombra e névoa e de segredo,
Onde uma nuvem vive e onde habita um rochedo,
Produz-me uma impressão longínqua e inatingível,
Uma estranha impressão oculta, intraduzível !
Perto de tanta alma e tanto coração
Só sinto, ao pé de mim, a fria solidão !
Eu sou um solitário, oh triste isolamento !
Das cousas vivo só no seu distanciamento!
E todavia este meu ser misterioso.
Assim como uma flor dum tronco musculoso,
Da terra inteira, num abril, desabrochou...
E nunca mais donde saiu se recordou !
Ficou um ser à parte, abandonado e triste.
Não sabendo o que foi, ignorando o que existe,
Embora noutro tempo ele andasse disperso
Por todo esse infinito e por todo o Universo.
Eu que vivi na consciência da Natura,
Que fui a sensação de cada cousa escura.
Eu que fui o ideal dos seres existentes.
Porque olham para mim, frios, inconscientes
Do que eu sou — eu que fui o que eles são ainda,
Eu que fui um clarão da sua luz infinda?...
E porque os vejo eu também nessa impotência
De os compreender, eu que já fui a sua essência?
Porque é que deles eu fiquei tão afastado?
Porque fiquei eu duma flor tão isolado?
Tão distante da luz, das nuvens e das fontes.
Que, sempre que eu estendo o olhar p'los horizontes,
Eu sou a eterna voz do Belo e da Verdade
Que vai ecoar, ao longe, em murmúrios d'amor,
Derramando-se assim por toda a imensidade,
Desde o peito dum tigre ao cálix duma flor !
Sou o trabalho, o esforço, a suavidade e a paz,
O prazer natural e o duro sofrimento...
Vivo no coração que sob a terra jaz,
Na harmonia do azul, no delírio do vento!...
Eu sou um mundo imenso ainda por criar...
Que ainda existe na névoa eterial da Origem...
Como um astro, eu espero a hora de raiar,
A hora da concepção, como esperou a Virgem !
Sou tudo o que há-de ser, tudo o que há-de existir,
Sou tudo o que uma alma, em êxtase, pressente...
Sou a voz do Futuro, essa voz que há-de ouvir
Tudo o que sonha e vive, o que estremece e sente ! . . .
Sou um gérmen ainda, à luz do grande dia
Que brilha em cada puro e sábio coração...
Sou a aurora ideal duma estranha harmonia,
Sou, ainda num beijo, a nova Criação !
Sou ainda o Incriado, o Inominado ainda,
Por isso eu tenho um ar não sei de que tristeza...
Sou, numa escura noite, aquela luz infinda
Que há-de transfigurar, num sonho, a Natureza!...
Sou, ainda em silêncio, a voz misteriosa
Que ao mundo há-de ensinar uma nova Piedade
Na língua universal que entenderá uma rosa.
Como uma árvore em flor entende a claridade!...
Realidade hei-de ser, já que sou o Ideal.
Em mim germina um mundo; a voz de Deus escuto.
Hei-de criar porque meu ventre é virginal.
Sonho, hei-de ser acção; e, flor, hei-de ser fruto.
Teixeira de Pascoaes