estou cansada
de tantos pensamentos
sobre a vida...
que não são meus...
são de outro homem...
Estou tão cansada,
que tenho vontade de chorar
pra quê?
prefiro dormir.
não há questão alguma que eu queira saber
de fato, eu queria aprender a dizer algo
é pra dizer algo?
pra dizer o q?
é pra calar
todas as páginas possíveis como dever...
quem sente?
a espalda, espalda.... el dolor...
ai, eu, ui..
Aquela falsa e triste semelhança
Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,
Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa (...)
Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.
Tenho náusea carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, (...) menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou.
s.d.
“Carnaval”. Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
- 7d.Às vezes medito,
Às vezes medito,
Às vezes medito, e medito mais fundo, e ainda mais fundo
E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície,
E todo o universo é um mar de caras de olhos fechados para mim.
Cada coisa — um candeeiro de esquina, uma pedra, uma árvore,
E um olhar que me fita de um abismo incompreensível,
E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.
Ah, haver coisas!
Ah, haver seres!
Ah, haver maneira de haver seres
De haver haver,
De haver como haver haver,
De haver...
Ah, o existir o fenómeno abstracto — existir,
Haver consciência e realidade,
O que quer que isto seja...
Como posso eu exprimir o horror que tudo isto me causa?
Como posso eu dizer como é isto para se sentir?
Qual é alma de haver ser?
Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver...
29-4-1928
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
- 82.Ah, abram-me outra realidade!
Ah, abram-me outra realidade!
Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos
E ter visões por almoço.
Quero encontrar as fadas na rua!
Quero desimaginar-me deste mundo feito com garras,
Desta civilização feita com pregos.
Quero viver como uma bandeira à brisa,
Símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!
Depois encerrem-me onde queiram.
Meu coração verdadeiro continuará velando
Pano brasonado a esfinges,
No alto do mastro das visões
Aos quatro ventos do Mistério.
O Norte — o que todos querem
O Sul — o que todos desejam
O Este — de onde tudo vem
O Oeste — aonde tudo finda
— Os quatro ventos do místico ar da civilização
— Os quatro modos de não ter razão, e de entender o mundo
4-4-1929
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
- 99.
I am the fleshless being who neither sleeps nor thinks. As soon as these
poor fools draw away from instinct, I lose my way in caprice, in the uselessness
or depth of these irritations of their brains they call “ideas” . . . I
lose myself in this Faust who seems to me sometimes to understand me
in a wholly different fashion than he should, as if there were another
world than the other world! . . . It is here that he shuts himself in and
amuses himself with what there is in the brain, and brews and ruminates
that mixture of what he knows and does not know, which they call
Thought . . . I do not know how to think and I have no soul. (The Mephistopheles of My Faust
Valéry..... )