Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi
despertar o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que
por isso mesmo consegue praticamente dominar o ambiente universitário,
cultural e midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos
e impondo derrotas humilhantes à racionalidade econômica
liberal-conservadora.
Refiro-me à escola "desconstrucionista" de Jacques Derrida,
Jean-François Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna
inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o
primado da ficção militante.
Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários
fenômenos da política brasileira que jamais teriam podido produzir-se
exceto num ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade
essencial de conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas.
Usei o termo "escola", mas os próprios desconstrucionistas o
rejeitam. Também não aceitam que o desconstrucionismo seja definido
como uma filosofia, um método de interpretação, um projeto acadêmico ou
qualquer outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o
recém-chegado na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na
aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser
acusado de incompreensão leiga. À entrada do
templo desconstrucionista, portanto, um cartaz em letras de fogo já
anuncia: "Ame-o ou deixe-o." Mas deixá-lo significa excluir-se a si
próprio da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou
reacionário, um escravo do universo
lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de
desconstrução. Não há terceira alternativa entre desconstruir e ser
desconstruído – e esta última hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de destruição social e profissional.
A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de
Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra
é a diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do
desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa premissa contra as
pretensões científicas da própria lingüística, ao concluir daí que, se a
língua é um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer
referência a um "significado" externo. Tudo o que o ser humano diz,
escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com "realidade", "fatos" etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído
de "textos" ou "discursos", mas, como não há nenhuma realidade externa
pela qual esses discursos possam ser aferidos, não tem sentido falar
de discursos "verdadeiros" ou "falsos". Não existe representação da
realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.
Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido
nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é representação da
realidade, é expressão da "vontade de poder". Mas isso não quer dizer
que por trás do discurso exista um "eu"
manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e
autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como
nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também não
existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada
"eu". Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser
apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora
separá-la do próprio sujeito pensante,
acrescentando à mera "différence" a "différance", com "a", termo criado
por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como
autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do
discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho
medonho, pois aí existe a palavra "diferição", sinônima de "adiamento",
que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do
meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar,
preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de
uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando
simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, "différance" (como diria Dirty Harry:
Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência.
Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe,
só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada "eu" e
outra ficção chamada "objeto". O motivo que produz a necessidade de
criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a
morte é inescapável, é a "realidade". Portanto a função de todos os
discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade.
Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32)
dizia que a liberdade nasce do
conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em
geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o
próprio poder.
No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova
filosofia, que, ao negar a realidade, punha em xeque toda pretensão de
conhecer as leis objetivas do processo
histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los, mostrando que, se o
desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o
movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a
cultura ocidental por meio da negação do
significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder
ilimitadamente: livre das coerções da realidade objetiva, imune
portanto a qualquer cobrança na esfera dos argumentos racionais, ele
poderia impor sua vontade por todos os meios ficcionais possíveis,
enquanto seus adversários, travados por escrúpulos de realidade e
lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível.
Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma
resposta prática ao apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs,
ao perceber que o grande obstáculo ao comunismo não era o poder
econômico da burguesia, mas dois milênios de civilização
judaico-cristã. "Quem nos livrará da civilização ocidental?",
perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da
fila foi o nazista Martin Heidegger. Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida: desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do
Führer e recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra,
deixando seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia
ainda mais sex appeal. A essência da filosofia de Martin
Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino que faz a ponte
entre o pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a
"vontade de poder" do Führer.
Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o "logocentrismo". A
convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg
Lukacs foi o pacto Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger,
afinal, não criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã
nada além da filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a
entende. Derrida et caterva transmutaram essa filosofia num projeto acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo um sucesso triunfal.
Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis
inconfundível da nossa classe universitária erigiram o
desconstrucionismo num culto fanático que não apenas repele
contestações mas nem mesmo admite a existência delas.
Um traço peculiar do
desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas últimas
conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica
de atacar a "mentira". Quando ele o faz perante um público que
desconhece a nuance específica que o termo tem para um
desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a
"verdade". Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade.
"Mentira", pois, é apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do
grupo desconstrucionista, à sua "vontade de poder". Inversa e
complementarmente, o termo "verdade", ao ser usado pelo
desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma
representação adequada da realidade comprovável, mas, entre os
iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às ilusões e desejos do
grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se estigmatizar como
"mentira" os fatos mais amplamente comprovados e impor como "verdade"
qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para vitaminar a
"vontade de poder" do movimento.
Objetivamente falando, o valor inteiro do
projeto desconstrucionista depende da premissa saussuriana de que o
sentido de uma palavra é apenas a diferença entre ela e todas as
outras. Essa premissa é falsa. Suponham a frase: "Jacques Derrida
morreu." A diferença entre Jacques Derrida e todos os outros seres
dotados de nomes humanos é a mesma quer ele esteja vivo ou morto. A
diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez, é a mesma quer você
esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a diferença entre
ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o indivíduo
Jacques Derrida, não será mais visto por aí dando palestras e
encantando milhões de idiotas. Ou a expressão "Jacques Derrida"
significa algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou tabnto faz Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do
mesmo modo, uma frase como "Não há mais comida" é a mesma – e suas
diferenças em relação a todas as outras são as mesmas -- quer você a
diga como puro exemplo verbal ou como expressão de um estado de fato. A
diferença neste último caso está na presença ou ausência física de
comida, que não é a mesma coisa que a "ausência do objeto" na mera formulação saussuriana do
significado como diferença entre uma frase e todas as demais. Esta
diferença é a mesma com comida ou sem comida. A falta de comida não é
bem isso.
Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a moderar as pretensões do
seu método, reconhecendo a existência de "indesconstruíveis" e, no
fim, admitindo que entre eles estava – que raiva, pô! – o próprio
Logos. Desconstrua você o que desconstruir, estará
sempre, pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de
referências balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição
metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto
nazista, pode destruir muitas coisas em torno, mas se destrói a si
mesma – e àqueles que embarcaram na sua proposta – em escala
infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a
verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da
ficção e sentir um gostinho de poder até o momento em que a morte
substitui todas as ficções por uma verdade "indesconstruível" e a
vontade de poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão
modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o
projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas hipnotizados pela atração do abismo.
Olavo de Carvalho,
http://www.olavodecarvalho.org/semana/061127dc.html