Ao avaliar alguns passos da história da filosofia, o filósofo estadunidense Richard Rorty disse que ao final do século XIX jamais poderíamos imaginar que ao final do século XX os únicos dois filósofos daquela época que ainda apresentariam interesse ao público seriam Nietzsche e Frege. Penso que Rorty está certo. Atualmente, se alguém se dedica a fazer filosofia analítica, então ganha o direito de filosofar. Nesse caso, a base é a compreensão de Frege e a tradição da nova lógica e os problemas da filosofia da linguagem atual. Se alguém se recusa a isto, então resta se transformar em professor de história da filosofia ou, se quer continuar filósofo, pode seguir Nietzsche ou alguns daqueles que trilharam seus caminhos ou aderiram a posições também anunciadas por ele.
Mas, apesar de Nietzsche ainda ser um filósofo lido, será que ele é bem lido?
Deleuze dizia que não se poder ler Nietzsche sem rir. Rorty disse que rimos muito, sim, ao ler Nietzsche, mas que rimos mais quando rimos de termos ficado rindo de Nietzsche. Em um primeiro momento, como foi o caso de Deleuze, rimos muito ao ler Nietzsche porque ele não deixa de ser engraçado com suas frases duras contra tudo que é o moderno, iluminista e crítico. Tudo aquilo que acostumamos a chamar de “ponto de vista filosófico”, distante do senso comum, é tomado por Nietzsche como sendo o senso comum de fato. Lemos Platão e seguimos com Marx, e então aprendemos que há algo como a ilusão dos sentidos ou então a ideologia, e nos tornamos críticos, ou seja, os que podem escapar da ilusão ou da ideologia e enxergar o que está por detrás das coisas. Nietzsche nos pega: quem disse a vocês que essa idéia de que existe algo por detrás das coisas não é, ela própria, uma grande invenção? Ora, então, não há como não rir.
Mas o que Rorty fala é que essa visão de Nietzsche, que nos faz rir, só é engraçada quando, depois de um tempo, vemos que a verdadeira graça está em acharmos que ela era engraçada. Como pudemos rir do que Nietzsche dizia? Achar que aquilo era engraçado, eis aí a verdadeira coisa engraçada. Pois, de fato, do mesmo modo que podemos rir da idéia de que há algo por detrás das coisas, também podemos rir da idéia de desmascarar quem diz que não há algo por traz das coisas. Pois se o primeiro riso foi por conta do filósofo parecer pedante diante do que ele chama de senso comum, e então ser desestabilizado pelo riso contra a pedanteria, no segundo caso o riso vem de percebermos que aquele que diz que não há máscaras, ilusões e ideologias está, ele também, naquele momento, mesmo que não queira, tentando tirar uma máscara, desfazer uma ilusão, destruir uma ideologia.
Assim, ler Nietzsche nos levaria a um abismo. A denúncia da denúncia é também ela nada mais que uma denúncia.
Mas Nietzsche, então, é só isso, só aquele que nos leva ao abismo? Seria ele apenas o criador do jogo de espelhos, como chamou a isso Foucault?
Não, Nietzsche deixa várias coisas positivas. Uma delas é sua própria doutrina da “vontade de potência”, que alguns acham que se trata de metafísica, e outros acham que é uma proposta de um modo de filosofar diferente – uma cosmologia em vez de uma metafísica ou qualquer outra coisa. O que vejo em Nietzsche, além disso, é que ele nos remete à percepção do caráter completamente metafórico de nossa linguagem. E isso me parece tão interessante quanto a sua proposta de filosofar como cosmólogo e não como metafísico ou filósofo moral ou como filósofo social.
Como Nietzsche faz isso? Simples. Em sua época, ou melhor, pouco depois de sua época, vários atacaram o positivismo, dizendo que este usava de uma linguagem das ciências físicas para querer compreender as ciências sociais e humanas, e que isso, ao não ser aceito como um procedimento metafórico, nos daria uma compreensão errada – coisificada – da vida humana. Nietzsche inverteu a seta. Ele disse que nossa aceitação da vida social como ela havia se organizado modernamente, ou seja, de modo democrático, é que havia conformado nosso modo de conversar e teorizar sobre a natureza. Assim, ele escreveu que era do fato de não vivermos mais sob as hierarquias do mundo dos nobres que havíamos achado natural que nada tivesse hierarquia. Por conta disso, teríamos inventado a idéia da regularidade e igualdade das leis naturais (Galileu e Newton à frente). Toda a nossa física, ao achar que leis universais podem ser aplicadas em todo e qualquer lugar, de modo equivalente, nada mais seria que a vitória, na cabeça científica, de um tipo de “sociologia” ou, melhor, de pré-sociologia feita sob a batuta da Revolução Francesa, a que instaurou no mundo a tal da igualdade.
Nietzsche foi quem alertou: acreditar que estamos sob leis, que todos nós estamos sob leis – as mesmas – nada mais é que a incorporação, por parte dos físicos, da idéia de “igualdade perante a lei”, algo próprio da Revolução Francesa e da Revolução Americana, algo do mundo moderno, algo do homem moderno, democrático e fraco. O homem que não suporta hierarquias.
Considero esse insight nietzschiano o suficiente para mostrar a positividade de Nietzsche. Se aprendemos algo de positivo com Nietzsche, esse algo é a idéia de que nunca falamos de modo literal, sempre estamos, quando nos expressamos, “figurando”, fazendo metáforas, metonímias, etc. Aliás, é isso mesmo que é a definição de verdade de Nietzsche: um bando de metáforas. Uma concepção da nossa linguagem, quando ela fala o que chamamos de verdade, como sendo um bando de metáforas, não é algo positivo? Não nos ensina algo, filosoficamente falando, que nos ajuda a ter uma espécie de “teoria da linguagem”?
Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo e diretor do Centro de Estudos em Filosofia Americana e Coordenador do GT-Pragmatismo da ANPOF.